E eu então: - Que dizes, ó
Diotima? É feio então o Amor, e mau?
E ela: - Não vais te calar? Acaso
pensas que o que não for belo, é forçoso ser feio?
- Exatamente.
- E também se não for sábio é
ignorante? Ou não percebeste que existe algo entre sabedoria e ignorância?
- Que é?
- O opinar certo, mesmo sem poder
dar razão, não sabes, dizia-me ela, que nem é saber - pois o que é sem razão,
como seria ciência? - nem é ignorância - pois o que atinge o ser, como seria
ignorância? – e que é sem dúvida alguma coisa desse tipo a opinião certa, um
intermediário entre entendimento e ignorância.
- É verdade o que dizes,
tornei--lhe.
- Não fiques, portanto, forçando
o que não é belo a ser feio, nem o que não é bom a ser mau. Assim também o
Amor, porque tu mesmo admites que não é bom nem belo, nem por isso vás imaginar
que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que está, dizia ela, entre esses dois
extremos.
- E todavia é por todos reconhecido
que ele é um grande deus.
- Todos os que não sabem, é o que
estás dizendo, ou também os que sabem?
- Todos eles, sem dúvida.
E ela sorriu e disse: - E como, ó
Sócrates, admitiriam ser um grande deus aqueles que afirmam que nem deus ele e?
- Quem são estes? Perguntei-lhe.
- Um és tu - respondeu-me - E eu,
outra.
E eu: - Que queres dizer com
isso?
E ela: - É simples. Dize-me, com
efeito, todos os deuses não os afirmas felizes e belos? Ou terias a audácia de
dizer que algum deles não é belo e feliz?
- Por Zeus, não eu -
retornei--lhe.
- E os felizes então, não dizes
que são os que possuem o que é bom e o que é belo?
- Perfeitamente.
- Mas no entanto, o Amor, tu
reconheceste que, por carência do que é bom e do que é belo, deseja isso mesmo
de que é carente.
- Reconheci, com efeito.
Como então seria deus o que
justamente é desprovido do que é belo e bom?
- De modo algum, pelo menos ao
que parece.
- Estás vendo então - disse - que
também tu não julgas o Amor um deus?
- Que seria então o Amor? -
perguntei-lhe. - Um mortal?
- Absolutamente.
- Mas o quê, ao cento, ó Diotima?
- Como nos casos anteriores -
disse-me ela - algo entre mortal e imortal.
- O quê, então, ó Diotima?
- Um grande gênio, ó Sócrates; e
com efeito, tudo o que é gênio está entre um deus e um mortal.
- E com que poder? Perguntei-lhe.
- O de interpretar e transmitir
aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses, de uns as
súplicas e os sacrifícios, e dos outros as ordens e as recompensas pelos
sacrifícios; e como está no meio de ambos ele os completa, de modo que o todo
fica ligado todo ele a si mesmo. Por seu intermédio é que procede não só toda
arte divinatória, como também a dos sacerdotes que se ocupam dos sacrifícios, das
iniciações e dos encantamentos, e enfim de toda adivinhação e magia. Um deus
com um homem não se mistura, mas é através desse ser que se faz todo o convívio
e diálogo dos deuses com os homens, tanto quando despertos como quando
dormindo; e aquele que em tais questões é sábio é um homem de gênio, enquanto o
sábio em qualquer outra coisa, arte ou oficio, é um artesão. E esses gênios, é
certo, são muitos e diversos, e um deles é justamente o Amor.
- E quem é seu pai -
perguntei-lhe - e sua mãe?
- É um tanto longo de explicar,
disse ela; todavia, eu te direi. Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os
deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso.
Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou
pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar - pois vinho ainda não havia
- penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em
sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e
pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o
Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo,
porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza
foi esta a condição em que ele ficou. Primeira-mente ele é sempre pobre, e
longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco,
descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às
portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a
precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso,
decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de
sabedoria e cheio ele recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago,
feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia
ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças
à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem
empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e
da ignorância. Eis com efeito o que se dá.
Nenhum deus filosofa ou deseja
ser sábio - pois já é -, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa.
Nem também os ignorantes
filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância,
no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe
basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que
não pensa lhe ser preciso.
- Quais então, Diotima -
perguntei-lhe - os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes?
- É o que é evidente desde já -
respondeu-me - até a uma criança: são os que estão entre esses dois
extremos, e um deles seria o
Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor pelo
belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre
o sábio e o ignorante. E a causa dessa sua condição é a sua origem: pois é
filho de um pai sábio e rico e de uma mãe que não é sábia, e pobre. É essa
então, ó Sócrates, a natureza desse gênio; quanto ao que pensaste ser o Amor,
não é nada de espantar o que tiveste. Pois pensaste, ao que me parece a tirar
pelo que dizes, que Amor era o amado e não o amante; eis por que, segundo
penso, parecia-te todo belo o Amor. E de fato o que é amável é que é realmente
belo, delicado, per-feito e bem-aventurado; o amante, porém é outro o seu
caráter, tal qual eu expliquei.
E eu lhe disse: - Muito bem,
estrangeira! É belo o que dizes! Sendo porém tal a natureza do Amor, que proveito
ele tem para os homens?
- Eis o que depois disso -
respondeu-me - tentarei ensinar-te. Tal é de fato a sua natureza e tal a sua origem;
e é do que é belo, como dizes. Ora, se alguém nos perguntasse: Em que é que é
amor do que é belo o Amor, ó Sócrates e Diotima? ou mais claramente: Ama o
amante o que é belo; que é que ele ama?
- Tê-lo consigo - respondi-lhe.
- Mas essa resposta - dizia-me
ela - ainda requer uma pergunta desse tipo: Que terá aquele que ficar com o que
é belo?
- Absolutamente - expliquei-lhe -
eu não podia mais responder-lhe de pronto a essa pergunta.
- Mas é, disse ela, como se
alguém tivesse mudado a questão e, usando o bom em vez do belo,
perguntasse: Vamos, Sócrates, ama
o amante o que é bom; que é que ele ama?
- Tê-lo consigo - respondi-lhe.
- E que terá aquele que ficar com
o que é bom?
- Isso eu posso - disse-lhe -
mais facilmente responder: ele será feliz.
- É com efeito pela aquisição do
que é bom, disse ela, que os felizes são felizes, e não mais é preciso ainda
perguntar: E para que quer ser feliz aquele que o quer? Ao contrário, completa
parece a resposta.
- É verdade o que dizes -
tornei-lhe.
- E essa vontade então e esse
amor, achas que é comum a todos os homens, e que todos querem ter sempre
consigo o que é bom, ou que dizes?
- Isso - respondi-lhe - é comum a
todos.
- E por que então, ó Sócrates,
não são todos que dizemos que amam, se é que todos desejam a mesma coisa e
sempre, mas sim que uns amam e outros não?
- Também eu - respondi-lhe -
admiro-me.
Mas não! Não te admires! - retrucou
ela; - pois é porque destacamos do amor um certo aspecto e, aplicando-lhe o
nome do todo, chamamo-lo de amor, enquanto para os outros aspectos servimo-nos
de outros nomes.
- Como, por exemplo?
Perguntei-lhe.
- Como o seguinte. Sabes que
"poesia" é algo de múltiplo; pois toda causa de qualquer coisa passar
do não-ser ao ser é “poesia”, de modo que as confecções de todas as artes são
“poesias”, e todos os seus artesãos poetas.
- É verdade o que dizes.
- Todavia continuou ela - tu
sabes que estes não são denominados poetas, mas tem outros nomes,enquanto que
de toda a “poesia” uma única parcela foi destacada, a que se refere à música e
aos versos, e com o nome do todo é denominada. Poesia é com efeito só isso que
se chama, e os que têm essa parte da poesia, poetas.
- É verdade - disse-lhe.
- Pois assim também é com o amor.
Em geral, todo esse desejo do que é bom e de ser feliz, eis o que é “o supremo
e insidioso amor, para todo homem”, no entanto, enquanto uns, porque se voltam
para ele por vários outros caminhos, ou pela riqueza ou pelo amor à ginástica
ou à sabedoria, nem se diz que amam nem que são amantes, outros ao contrário,
procedendo e empenhando-se numa só forma, detêm o nome do todo, de amor, de
amar e de amantes.
- É bem provável que estejas
dizendo a verdade - disse-lhe eu.
- E de fato corre um dito,
continuou ela, segundo o qual são os que procuram a sua própria metade os que amam;
o que eu digo porém é que não é nem da metade o amor, nem do todo; pelo menos,
meu amigo, se não se encontra este em bom estado, pois até os seus próprios pés
e mãos querem os homens cortar, se lhes parece que o que é seu está ruim. Não é
com efeito o que é seu, penso, que cada um estima, a não ser que se chame o bem
de próprio e de seu, e o mal de alheio; pois nada mais há que amem os homens
serão o bem; ou te parece que amam?
- Não, por Zeus - respondi-lhe.
- Será então - continuou - que é
tão simples assim, dizer que os homens amam o bem?
- Sim - disse-lhe.
- E então? Não se deve
acrescentar que é ter consigo o bem que eles amam?
- Deve-se.
- E sem dúvida - continuou - não
apenas ter, mas sempre ter?
- Também isso se deve
acrescentar.
- Em resumo então - disse ela - é
o amor amor de consigo ter sempre o bem.
- Certíssimo - afirmei-lhe - o
que dizes.
Quando então - continuou ela - é
sempre isso o amor, de que modo, nos que o perseguem, e em que ação, o seu zelo
e esforço se chamaria amor? Que vem a ser essa atividade? Podes dizer-me?
- Eu não te admiraria então, ó Diotima,
por tua sabedoria, nem te freqüentaria para aprender isso mesmo.
- Mas eu te direi - tornou-me. -É
isso, com efeito, um parto em beleza, tanto no corpo como na alma.
- É um adivinho - disse-lhe eu -
que requer o que estás dizendo: não entendo.
- Pois eu te falarei mais
clara-mente, Sócrates, disse-me ela. Com efeito, todos os homens concebem, não só
no corpo como também na alma, e quando chegam a certa idade, é dar à luz que
deseja a nossa natureza. Mas ocorrer isso no que é inadequado é impossível. E o
feio é inadequado a tudo o que é divino, enquanto o belo é adequado. Moira
então e Ilitia do nascimento é a Beleza. Por isso, quando do belo se aproxima o
que está em concepção, acalma-se, e de júbilo transborda, e dá à luz e gera;
quando porém é do feio que se aproxima, som-brio e aflito contrai-se,
afasta-se, recolhe-se e não gera, mas,retendo o que concebeu, penosamente o
carrega. Daí é que ao que está prenhe e já intumescido é grande o alvoroço que
lhe vem à vista do belo, que de uma grande dor liberta o que está prenhe.
É com efeito, Sócrates, dizia-me
ela, não do belo o amor, como pensas.
- Mas de que é enfim?
- Da geração e da parturição no
belo.
- Seja - disse-lhe eu.
- Perfeitamente - continuou. - E
por que assim da geração? Porque é algo de perpétuo e mortal para um mortal, a
geração. E é a imortalidade que, com o bem, necessariamente se deseja, pelo que
foi admitido, se é que o amor é amor de sempre ter consigo o bem. É de fato
forçoso por esse argumento que também da imortalidade seja o amor.
Tudo isso ela me ensinava, quando
sobre as questões de amor discorria, e uma vez ela me perguntou: - Que pensas,
ó Sócrates, ser o motivo desse amor e desse desejo? Porventura não percebes
como é estranho o comportamento de todos os animais quando desejam gerar, tanto
dos que andam quanto dos que voam, adoecendo todos em sua disposição amorosa,
primeiro no que concerne à união de um com o outro, depois no que diz respeito
à criação do que nasceu? E como em vista disso estão prontos para lutar os mais
fracos contra os mais fortes, E mesmo morrer, não só se torturando pela fome a
fim de alimentá-los como tudo o mais fazendo? Ora, os homens, continuou ela,
poder-se-ia pensar que é pelo raciocínio que eles agem assim; mas os animais,
qual a causa desse seu comportamento amoroso? Podes dizer-me?
De novo eu lhe disse que não
sabia; e ela me tornou: - Imaginas então algum dia te tornares temível nas questões
do amor, se não refletires nesses fatos?
- Mas é por isso mesmo, Diotima -
como há pouco eu te dizia - que vim a ti, porque reconheci que precisava de
mestres. Dize-me então não só a causa disso, como de tudo o mais que concerne
ao amor.
- Se de fato - continuou - crês
que o amor é por natureza amor daquilo que muitas vezes admitimos, não fiques
admirado. Pois aqui, segundo o mesmo argumento que lá, a natureza mortal
procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal. E ela só pode
assim, através da geração, porque sempre deixa um outro ser novo em lugar do
velho; pois é nisso que se diz que cada espécie animal vive e é a mesma, assim
como de criança o homem se diz o mesmo até se tornar velho; este na verdade,
apesar de jamais ter em si as mesmas coisas, diz-se todavia que é o mesmo,
embora sempre se renovando e perdendo alguma coisa, nos cabelos, nas carnes,
nos ossos, no sangue e em todo o corpo. E não é que é só no corpo, mas também
na alma os modos, os costumes, as opiniões, desejos, prazeres, aflições,
temores, cada um desses afetos jamais permanece o mesmo em cada um de nós, mas
uns nascem, outros morrem. Mas ainda mais estranho do que isso é que até as
ciências não é só que umas nascem e outras morrem para nós, e jamais somos os
mesmos nas ciências, mas ainda cada uma delas sofre a mesma contingência. O
que, com efeito, se chama exercitar é como se de nós estivesse saindo a
ciência; esquecimento é escape de ciência, e o exercício, introduzindo uma nova
lembrança em lugar da que está saindo, salva a ciência, de modo a parecer ela
ser a mesma. É desse modo que tudo o que é mortal se conserva, E não pelo fato
de absolutamente ser sempre o mesmo, como o que é divino, mas pelo fato de
deixar o que parte e envelhece um outro ser novo, tal qual ele mesmo era. É por
esse meio, ó Sócrates, que o mortal participa da imortalidade, no corpo como em
tudo mais o imortal porém é de outro modo. Não te admires portanto de que o seu
próprio rebento, todo ser por natureza o aprecie: é em virtude da imortalidade
que a todo ser esse zelo e esse amor acompanham.
Depois de ouvir o seu discurso,
admirado disse-lhe: - Bem, ó doutíssima Diotima, essas coisas é verdadeiramente
assim que se passam?
E ela, como os sofistas
consumados, tornou-me: - Podes estar certo, ó Sócrates; o caso é que, mesmo entre
os homens, se queres atentar à sua ambição, admirar-te-ias do seu
desarrazoamento, a menos que, a respeito do que te falei, não reflitas, depois
de considerares quão estranhamente eles se comportam com o amor de se tornarem
renomados e de “para sempre uma g1ória imortal se preservarem”, e como por isso
estão prontos a arrostar todos os perigos, ainda mais do que pelos filhos, a
gastar fortuna, a sofrer privações, quaisquer que elas sejam, e até a
sacrificar-se. Pois pensas tu, continuou ela, que Alceste morreria por Admeto,
que Aquiles morreria depois de Pátroclo, ou o vosso Codro morreria antes, em favor
da realeza dos filhos, se não imaginassem que eterna seria a memória da sua
própria virtude, que agora nós conservamos? Longe disso, disse ela; ao
contrário, é, segundo penso, por uma virtude imortal e por tal renome e glória
que todos tudo fazem, e quanto melhores tanto mais; pois é o imortal que eles amam.
Por conseguinte, continuou ela, aqueles que estão fecundados em seu corpo
voltam-se de preferência para as mulheres, e é desse modo que são amorosos,
pela procriação conseguindo para si imortalidade, memória e bem-aventurança por
todos os séculos seguintes, ao que pensam; aqueles porém que é em sua alma -
pois há os que concebem na alma mais do que no corpo, o que convém à alma conceber
e gerar; e o que é que lhes convém senão o pensamento e o mais da virtude?
Entre estes estão todos os poetas criadores e todos aqueles artesãos que se diz
serem inventivos; mas a mais importante, disse ela, e a mais bela forma de
pensa-mento é a que trata da organização dos negócios da cidade e da família, e
cujo nome é prudência e justiça - destes por sua vez quando alguém, desde cedo
fecundado em sua alma, ser divino que é, e chegada a idade oportuna, já está desejando
dar à luz e gerar, procura então também este, penso eu, à sua volta o belo em
que possa gerar; pois no que é feio ele jamais o fará. Assim é que os corpos
belos mais que os feios ele os acolhe, por estar em concepção; e se encontra
uma alma bela, nobre e bem dotada, é total o seu acolhimento a ambos, e para um
homem desses logo ele se enriquece de discursos sobre a virtude, sobre o que
deve ser o homem bom e o que deve tratar, e tenta educá-lo. Pois ao contato sem
dúvida do que é belo e em sua companhia, o que de há muito ele concebia ei-lo
que dá à luz e gera, sem o esquecer tanto em sua presença quanto ausente, e o
que foi gerado, ele o alimenta justamente com esse belo, de modo que uma
comunidade muito maior que a dos filhos ficam tais indivíduos mantendo entre
si, e uma amizade mais firme, por serem mais belos e mais imortais os filhos
que têm em comum. E qualquer um aceitaria obter tais filhos mais que os
humanos, depois de considerar Homero e Hesíodo, e admirando com inveja os
demais bons poetas, pelo tipo de descendentes que deixam de si, e que uma
imortal glória e mem6ria lhes garantem, sendo eles mesmos o que são; ou se preferes,
continuou ela, pelos filhos que Licurgo deixou na Lacedemônia, salvadores da
Lacedemônia e por assim dizer da Grécia. E honrado entre vós é também Sólon
pelas leis que criou, e outros muitos em muitas outras partes, tanto entre os
gregos como entre os bárbaros, por terem dado à luz muitas obras belas e gerado
toda espécie de virtudes; deles é que já se fizeram muitos cultos por causa de
tais filhos, enquanto que por causa dos humanos ainda não se fez nenhum.
São esses então os casos de amor
em que talvez, ó Sócrates, também tu pudesses ser iniciado; mas, quanto à sua
perfeita contemplação, em vista da qual é que esses graus existem, quando se
procede corretamente, não sei se serias capaz; em todo caso, eu te direi,
continuou, e nenhum esforço pouparei; tenta então seguir-me se fores capaz:
deve com efeito, começou ela, o que corretamente se encaminha a esse fim,
começar quando jovem por dirigir-se aos belos corpos, e em primeiro lugar, se
corretamente o dirige o seu dirigente, deve ele amar um só corpo e então gerar
belos discursos; depois deve ele compreender que a beleza em qualquer corpo é
irmã da que está em qualquer outro, e que, se se deve procurar o belo na forma,
muita tolice seria não considerar uma só e a mesma a beleza em todos os corpos;
e depois de entender isso, deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e
largar esse amor violento de um só, após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho;
depois disso a beleza que está nas almas deve ele considerar mais preciosa que
a do corpo, de modo que, mesmo se alguém de uma alma gentil tenha todavia um
escasso encanto, contente-se ele, ame e se interesse, e produza e procure
discursos tais que tornem melhores os jovens; para que então seja obrigado a
contemplar o belo nos ofícios e nas leis, e a ver assim que todo ele tem um
parentesco comum, e julgue enfim de pouca monta o belo no corpo; depois dos
ofícios é para as ciências que é preciso transportá-lo, a fim de que veja
também a beleza das ciências, e olhando para o belo já muito, sem mais amar
como um doméstico a beleza individual de um criançola, de um homem ou de um só
costume, não seja ele, nessa escravidão, miserável e um mesquinho discursador, mas
voltado ao vasto oceano do belo e, contemplando-o, muitos discursos belos e magníficos
ele produza, e reflexões, em inesgotável amor à sabedoria, até que aí
robustecido e crescido contemple ele uma certa ciência, única, tal que o seu
objeto é o belo seguinte. Tenta agora, disse-me ela, prestar-me a máxima
atenção possível. Aquele, pois, que até esse ponto tiver sido orientado para as
coisas do amor, contemplando seguida e corretamente o que é belo, já chegando
ao ápice dos graus do amor, súbito perceberá algo de maravilhosa-mente belo em
sua natureza, aquilo mesmo, ó Sócrates, a que tendiam todas as penas
anteriores, primeiramente sempre sendo, sem nascer nem perecer, sem crescer nem
decrescer, e depois, não de um jeito belo e de outro feio, nem ora sim ora não,
nem quanto a isso belo e quanto àquilo feio, nem aqui belo ali feio, como se a
uns fosse belo e a outros feio; nem por outro lado aparecer-lhe-á o belo como
um rosto ou mãos, nem como nada que o corpo tem consigo, nem como algum
discurso ou alguma ciência, nem certa-mente como a existir em algo mais, como, por
exemplo, em animal da terra ou do céu, ou em qualquer outra coisa; ao
contrário, aparecer-lhe-á ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, sendo sempre
uniforme, enquanto tudo mais que é belo dele participa, de um modo tal que,
enquanto nasce e perece tudo mais que é belo, em nada ele fica maior ou menor,
nem nada sofre. Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo,
através do correto amor aos jovens, começa a contemplar aquele belo, quase que
estaria a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder
correta-mente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista
daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois
e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios,
e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela
ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que
em si é belo. Nesse ponto da vida, meu caro Sócrates, continuou a estrangeira
de Mantinéia, se é que em outro mais, poderia o homem viver, a contemplar opróprio
belo. Se algum dia o vires, não é como ouro ou como roupa que ele te parecerá
ser, ou como os belos jovens adolescentes, a cuja vista ficas agora aturdido e
disposto, tu como outros muitos, contanto que vejam seus amados e sempre
estejam com eles, a nem comer nem beber, se de algum modo fosse possível, mas a
só contemplar e estar ao seu lado. Que pensamos então que aconteceria, disse
ela, se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e
não repleto de carnes, humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas
o próprio divino belo pudesse ele em sua forma única contemplar? Porventura
pensas, disse, que é vida vã a de um homem a olhar naquela direção e aquele objeto,
com aquilo com que deve, quando o contempla e com ele convive? Ou não
consideras, disse ela, que somente então, quando vir o belo com aquilo com que
este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não
é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará
tocando?
Eis o que me dizia Diotima, ó
Fedro e demais presentes, e do que estou convencido; e porque estou convencido,
tento convencer também os outros de que para essa aquisição, um colaborador da
natureza humana melhor que o Amor não se encontraria facilmente. Eis por que eu
afirmo que deve todo homem honrar o Amor, e que eu próprio prezo o que lhe
concerne e particularmente o cultivo, e aos outros exorto, e agora e sempre
elogio o poder e a virilidade do Amor na medida em que sou capaz. Este discurso,
ó Fedro, se queres, considera-o proferido como um encômio ao Amor; se não, o
que quer que e como quer que te apraza chamá-lo, assim deves fazê-lo.